domingo, 20 de maio de 2012

Sobretons



Aqui estamos, sentados frente a frente, enquanto você saboreia delicadamente o seu cigarro importado. Há uma luz baixa que bem devagar vai contando-nos o que acontecerá em seguida, o que não queremos admitir.
Naquele toca discos que eu trouxe da minha última viagem à Lituânia, tem uma música melancólica de Ane Brun que debocha do nosso silêncio adolescente e imaturo;
“Você se foi Alfonsina com sua solidão, que poemas novos você foi buscar? Uma voz antiga de vento e sal te sacode a alma e a está levando. E assim você vai como aos sonhos: adormecida, Alfosina, vestida de mar.”
-Não me recordava desse seu casaco conhaque-amnésia. Quando foi que o comprou?
-Na semana passada, na loja do Sebastian.
-E há quanto tempo vocês estão se vendo?
-Nos vendo?
-Sim, quero saber desde quando vocês estão saindo!
-Por acaso esse seu sapato azul-abstração é novo?
-Não, mas há algum tempo ele estava esquecido. A gente esquece algumas coisas importantes e se distrai com outras quaisquer. Outro dia me peguei procurando por aquele livro de cabeceira que sempre líamos antes de dormir “Como Salvar Seu Casamento em 3 Capítulos”
-Eu o dei pra Guiná há dois dias. Ela me contou enquanto esfregava o chão da cozinha que seu marido agora deu pra cismar com o trajeto que ela faz de casa para o trabalho.
-Ah, sim! Uma pena. Faltava dois capítulos pra gente terminar, apesar de ter achado o segundo parágrafo do prefácio um tanto quanto blazé. Compro outro?
-Não. Por hora não posso me preocupar com isso. Há memórias embaçadas que deixaram um vácuo nessa casa.
-Como por exemplo o problema do aquecedor à gás que herdamos da sua família, e cujo técnico que veio olhar nos disse: “Troca. Vocês não conseguirão manter essa relação aquecida, as peças desse aparelho estão desgastadas e fora de padrão, não dá nem pra reformar”.
-Você não entende que é presente, que tem sentimento e tem história? Não dá pra jogar tudo fora, não dá pra descartar tudo aquilo que já não é suficiente. Você e sua mania de comprar.
-Tá sentindo esse cheiro? Você esqueceu o jantar no forno?
-Por que você não presta atenção em mim? Pela milésima vez o coração deverá ser bem passado, e que as batatas tem que ficar em tom de caramelo-amargo.
-A propósito, tomaremos um tinto ou um branco?
-Nenhum, continuaremos a refeição com o que já estamos tomando: água sem graça.
-Não gosto desse sofá. Não consigo me sentir confortável com essa textura de couro preto-repulsivo.
-Troca!
-O couro ou o sofá?
-Tanto faz, não sentamos nele. Talvez devêssemos deixar esse pedaço da sala sem nada.
-Vazio?
-Porque não? Há momentos em que não precisamos preencher os espaços só pra que não existam espaços.
-Você também acha que precisamos de espaço?
-Sempre soube disso. Nunca entendi a sua insistência em ter tudo no lugar e tão perfeito. Por mais que pintemos esse apartamento, sempre haverá por trás das camadas de tinta uma parede rebocada e cheia de fios imundos que precisam de manutenção, pois estão fadados ao desgaste.
-Ponho a mesa?
-Seguindo a ordem da esquerda para a direita: taça de água, de vinho tinto, champanhe e taça de vinho branco.
-Me deixa terminar primeiro o cigarro. Quando foi a última vez que nos sentamos à mesa?
- Não me lembro. Te sirvo e você me serve?
-Melhor ligar pra algum delivery e pedir sobremesa.
-Pede torta, combina mais com a noite.
-Troco pra quanto?
-Vou pagar no cartão...