Aqui
estamos, sentados frente a frente, enquanto você saboreia delicadamente o seu
cigarro importado. Há uma luz baixa que bem devagar vai contando-nos o que
acontecerá em seguida, o que não queremos admitir.
Naquele toca
discos que eu trouxe da minha última viagem à Lituânia, tem uma música
melancólica de Ane Brun que debocha do nosso silêncio adolescente e imaturo;
“Você se foi
Alfonsina com sua solidão, que poemas novos você foi buscar? Uma voz antiga de
vento e sal te sacode a alma e a está levando. E assim você vai como aos
sonhos: adormecida, Alfosina, vestida de mar.”
-Não me
recordava desse seu casaco conhaque-amnésia. Quando foi que o comprou?
-Na semana
passada, na loja do Sebastian.
-E há quanto
tempo vocês estão se vendo?
-Nos vendo?
-Sim, quero
saber desde quando vocês estão saindo!
-Por acaso
esse seu sapato azul-abstração é novo?
-Não, mas há
algum tempo ele estava esquecido. A gente esquece algumas coisas importantes e
se distrai com outras quaisquer. Outro dia me peguei procurando por aquele
livro de cabeceira que sempre líamos antes de dormir “Como Salvar Seu Casamento
em 3 Capítulos”
-Eu o dei
pra Guiná há dois dias. Ela me contou enquanto esfregava o chão da cozinha que
seu marido agora deu pra cismar com o trajeto que ela faz de casa para o
trabalho.
-Ah, sim!
Uma pena. Faltava dois capítulos pra gente terminar, apesar de ter achado o
segundo parágrafo do prefácio um tanto quanto blazé. Compro outro?
-Não. Por
hora não posso me preocupar com isso. Há memórias embaçadas que deixaram um
vácuo nessa casa.
-Como por
exemplo o problema do aquecedor à gás que herdamos da sua família, e cujo
técnico que veio olhar nos disse: “Troca. Vocês não conseguirão manter essa
relação aquecida, as peças desse aparelho estão desgastadas e fora de padrão,
não dá nem pra reformar”.
-Você não
entende que é presente, que tem sentimento e tem história? Não dá pra jogar
tudo fora, não dá pra descartar tudo aquilo que já não é suficiente. Você e sua
mania de comprar.
-Tá sentindo
esse cheiro? Você esqueceu o jantar no forno?
-Por que
você não presta atenção em mim? Pela milésima vez o coração deverá ser bem
passado, e que as batatas tem que ficar em tom de caramelo-amargo.
-A
propósito, tomaremos um tinto ou um branco?
-Nenhum,
continuaremos a refeição com o que já estamos tomando: água sem graça.
-Não gosto
desse sofá. Não consigo me sentir confortável com essa textura de couro
preto-repulsivo.
-Troca!
-O couro ou
o sofá?
-Tanto faz,
não sentamos nele. Talvez devêssemos deixar esse pedaço da sala sem nada.
-Vazio?
-Porque não?
Há momentos em que não precisamos preencher os espaços só pra que não existam
espaços.
-Você também
acha que precisamos de espaço?
-Sempre
soube disso. Nunca entendi a sua insistência em ter tudo no lugar e tão perfeito.
Por mais que pintemos esse apartamento, sempre haverá por trás das camadas de
tinta uma parede rebocada e cheia de fios imundos que precisam de manutenção,
pois estão fadados ao desgaste.
-Ponho a
mesa?
-Seguindo a
ordem da esquerda para a direita: taça de água, de vinho tinto, champanhe e
taça de vinho branco.
-Me deixa
terminar primeiro o cigarro. Quando foi a última vez que nos sentamos à mesa?
- Não me
lembro. Te sirvo e você me serve?
-Melhor
ligar pra algum delivery e pedir sobremesa.
-Pede torta,
combina mais com a noite.
-Troco pra
quanto?
-Vou pagar
no cartão...