Dia desses estava andando em pensamento pelos arredores daquela casa
de fazenda, palco das mais divertidas e inusitadas reuniões familiares, e
também das mais ferozes e bizarras brigas, dessas que toda família com mais de
cinco pessoas juntas protagonizam sempre que expostas a determinado tempo de
convivência – férias.
Revivia a cada passo todas as sensações que me acostumara certa época
em certa idade – como o terreiro áspero e cheio de pedrinhas que insistíamos em
brincar de pega-pega descalço, quase ignorando aquelas dorzinhas, não fosse por
alguma superfície mais pontiaguda causar em alguma das crianças um corte mais
forte, e aí parava a brincadeira.
Em outro momento, sentia a madeira ainda úmida e escorregadia do
curral, graças ao acúmulo do lodo da temporada chuvosa. Ficávamos na varanda
olhando o céu desabando lá fora, sentados no banco grande e azul, outros
disputando a única rede que tínhamos e mais alguns dependurados sobre o
parapeito, sentindo os respingos frios.
A memória é algo fascinante, pois quanto mais se caminha por ela, mais
se reavivam os sentimentos de outrora, assinalando o quanto estava marcado –
mais do que se imaginava – dentro da alma. Foi só lembrar-se da impossibilidade
de brincar no quintal quando chovia que os pés me guiaram até a parte onde
inventávamos esconde-esconde dentro de casa – espaço sempre teve, muito além
das terras com pastos e mata nativa, a casa sempre fora a mais aconchegante do
mundo, sendo suficiente pra caber aquele tanto de primo, tio, parentes de todos
os graus, todo mundo muito expansivo e extrovertido. Era nosso castelo
encantado em arquitetura com resquícios portugueses.
E como não mencionar os milhares de aromas: tem o cheiro do campo, da
floresta, dos animais, da chuva sobre tudo isso, do café coado, do bolo de
fubá, do fogo sendo soprado no fogão à lenha pra queimar mais. Tem cheiro de
flor, de queijo, de madeira de lei, de madeira sendo cortada na serraria da
fazenda, tem cheiro de vela da igrejinha, de amora do único pé em meio a tantas
frutas, como também só tínhamos um pé de pitanga, um de jabuticaba, um de
jambo.
E se tem aroma, tem sabor, ainda mais com esse tanto de gente que eu
disse: tem que provar a galinhada, o biscoito de polvilho, o doce de leite com
amendoim torrado, a farinha torrada na pedra, a “puxa” feita de rapadura, a
carambola meio verde, a couve refogada, o molho de tomatinho fresco, e as
conservas de pimentas dali mesmo.
Há muita memória, e muita caixinha pra guardar todas elas. Mas pra
guardar todas as caixinhas, só tem um lugar: nessa andança pelo coração, achei
no empoeirado paiol usado pra estocar os grãos das safras e também para
hospedar os caseiros e peões, um baú já gasto, de madeira e couro de vaca, com
suas tachas largas de metal envelhecido, feito pelo meu avô, naquele tempo em
que as pessoas dedicavam o tempo a crias suas próprias coisas.
Um lindo e enorme baú, contendo em si mesmo toda a dedicação de alguém
que passou alguns dias confeccionando algo que após anos continua sendo útil.
Basta olhar para esse objeto que consigo ver sua tampa sendo aberta e dali,
caixinha por caixinha – a das datas comemorativas, a dos dias atípicos, a dos
dias normais, a caixinha das férias de 1990, a de 1991, a de 92, etc. – saindo
e se esparramando por um chão sem fim.
É um baú com um tesouro inestimável, pois o valor dos objetos alcança
a incapacidade de comercializá-los por quaisquer quantias financeiras. São
sensações de valor inenarrável e intransferível.
Mas o mais legal desse baú de memórias é que posso derramar tudo no
chão, feito criança querendo brincar com todos os brinquedos. E deixar ali mesmo
espalhado! Pois tal qual família grande - pode ser que cada coisa ou cada um
esteja num canto - uma hora tudo volta para o lugar onde estava antes, pra no
dia seguinte esparramar de nevo, e de novo, e de novo...
As memórias assim como os laços que amarram os presentes, precisam ser
desatadas. Mas uma vez que isso é feito, não se evanescem, antes, deixam à
mostra as lembranças que traziam embrulhadas.