quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Memórias de Um Baú




Dia desses estava andando em pensamento pelos arredores daquela casa de fazenda, palco das mais divertidas e inusitadas reuniões familiares, e também das mais ferozes e bizarras brigas, dessas que toda família com mais de cinco pessoas juntas protagonizam sempre que expostas a determinado tempo de convivência – férias.
Revivia a cada passo todas as sensações que me acostumara certa época em certa idade – como o terreiro áspero e cheio de pedrinhas que insistíamos em brincar de pega-pega descalço, quase ignorando aquelas dorzinhas, não fosse por alguma superfície mais pontiaguda causar em alguma das crianças um corte mais forte, e aí parava a brincadeira.
Em outro momento, sentia a madeira ainda úmida e escorregadia do curral, graças ao acúmulo do lodo da temporada chuvosa. Ficávamos na varanda olhando o céu desabando lá fora, sentados no banco grande e azul, outros disputando a única rede que tínhamos e mais alguns dependurados sobre o parapeito, sentindo os respingos frios.
A memória é algo fascinante, pois quanto mais se caminha por ela, mais se reavivam os sentimentos de outrora, assinalando o quanto estava marcado – mais do que se imaginava – dentro da alma. Foi só lembrar-se da impossibilidade de brincar no quintal quando chovia que os pés me guiaram até a parte onde inventávamos esconde-esconde dentro de casa – espaço sempre teve, muito além das terras com pastos e mata nativa, a casa sempre fora a mais aconchegante do mundo, sendo suficiente pra caber aquele tanto de primo, tio, parentes de todos os graus, todo mundo muito expansivo e extrovertido. Era nosso castelo encantado em arquitetura com resquícios portugueses.
E como não mencionar os milhares de aromas: tem o cheiro do campo, da floresta, dos animais, da chuva sobre tudo isso, do café coado, do bolo de fubá, do fogo sendo soprado no fogão à lenha pra queimar mais. Tem cheiro de flor, de queijo, de madeira de lei, de madeira sendo cortada na serraria da fazenda, tem cheiro de vela da igrejinha, de amora do único pé em meio a tantas frutas, como também só tínhamos um pé de pitanga, um de jabuticaba, um de jambo.
E se tem aroma, tem sabor, ainda mais com esse tanto de gente que eu disse: tem que provar a galinhada, o biscoito de polvilho, o doce de leite com amendoim torrado, a farinha torrada na pedra, a “puxa” feita de rapadura, a carambola meio verde, a couve refogada, o molho de tomatinho fresco, e as conservas de pimentas dali mesmo.
Há muita memória, e muita caixinha pra guardar todas elas. Mas pra guardar todas as caixinhas, só tem um lugar: nessa andança pelo coração, achei no empoeirado paiol usado pra estocar os grãos das safras e também para hospedar os caseiros e peões, um baú já gasto, de madeira e couro de vaca, com suas tachas largas de metal envelhecido, feito pelo meu avô, naquele tempo em que as pessoas dedicavam o tempo a crias suas próprias coisas.
Um lindo e enorme baú, contendo em si mesmo toda a dedicação de alguém que passou alguns dias confeccionando algo que após anos continua sendo útil. Basta olhar para esse objeto que consigo ver sua tampa sendo aberta e dali, caixinha por caixinha – a das datas comemorativas, a dos dias atípicos, a dos dias normais, a caixinha das férias de 1990, a de 1991, a de 92, etc. – saindo e se esparramando por um chão sem fim.
É um baú com um tesouro inestimável, pois o valor dos objetos alcança a incapacidade de comercializá-los por quaisquer quantias financeiras. São sensações de valor inenarrável e intransferível.
Mas o mais legal desse baú de memórias é que posso derramar tudo no chão, feito criança querendo brincar com todos os brinquedos. E deixar ali mesmo espalhado! Pois tal qual família grande - pode ser que cada coisa ou cada um esteja num canto - uma hora tudo volta para o lugar onde estava antes, pra no dia seguinte esparramar de nevo, e de novo, e de novo...
As memórias assim como os laços que amarram os presentes, precisam ser desatadas. Mas uma vez que isso é feito, não se evanescem, antes, deixam à mostra as lembranças que traziam embrulhadas.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Depois das Rosas


Ele orou. Jurou que durante nove dias iria entregar suas preces a alguma força superior que fosse capaz de olhar para sua medíocre condição humana e oferecer misericórdia.
Ele orou com força de uma fé que nunca teve. Queria milagre que se toca com as mãos, desses que se sai correndo de casa em casa para que outras pessoas o toquem e também creiam. E tenham esperança de que um dia o milagre acontece. Um dia...
Cansou de chorar como imagem católica quando não consegue mais atender a tantos pedidos. Chorava sangue, água, algum perfume com aroma de cravo amarelo. Chorou até a última gota do que é possível chorar. Mas sempre tinha mais.
Acreditou que talvez suas lágrimas intermináveis fossem o milagre da vida em meio a tantas angústias. Continuar mesmo com os olhos marejados, inchados e a gola das camisas molhadas. Há muito vivia caminhando e chorando.
Mas sempre fora de acreditar num depois. Sempre há um depois, mesmo que o depois seja incerto como a morte. A morte de tudo que acreditamos, dos valores, ciência, história, religião. Mesmo depois da morte há um depois. Com as angústias não poderia ser diferente.
Talvez houvesse mais angústias depois das angústias ou talvez houvesse a morte delas.
Uma coisa sempre foi e sempre será: a angústia da incerteza do depois e com ela, a angústia da espera.
Depois de cada pequena coisa há sempre a fadiga ansiosa do inóspito e pouco palpável caminho do depois. São as durações de tempo incomensuráveis que projetam a esperança de um futuro incerto, baseados num presente interrompido pela falta de visibilidade nas possibilidades do instante, obstruído pela dor. E tudo isso empurrado por um passado, às vezes fantasmagórico, e que não deixa de assombrar.
Em suas orações pedia tantas coisas que dia após dia se perdia no que pedia e, às vezes já nem sabia como ou o que pedir. Paciência é sempre uma necessidade e talvez pedir paciência pra conseguir pedir uma coisa de cada vez já impulsionasse para um sentimento de esperança mais maduro e a visão de um depois menos ameaçador.
E durante os nove dias que oraria, pediu por um sinal de que o milagre aconteceria. Que ganhasse uma rosa como as rosas que carregavam aquele ser para quem orava. Porém se havia algo mais angustiante do que a espera de um milagre, seria a angústia dupla da espera do sinal de que o milagre estaria a caminho e em seguida a própria angústia do milagre.
Oito dias se passaram de suas orações pela aparição de rosas, e as rosas simplesmente não estavam em qualquer lugar que fosse.
Ninguém com o nome de Rosa, ou uma rua que passasse por ela. Nenhuma embalagem do que costumava comprar trazia qualquer flor que se assemelhasse àquela que tanto buscava. Ninguém lhe enviou sequer um botão. Nenhuma música contava sobre as rosas. Onde elas estavam?
Percebeu que seu mundo estava plantado de todas as flores que compõe um jardim, menos as flores que desabrocham o milagre da esperança do depois: as rosas.
Seu jardim florido, colorido com as mais intensas cores que as flores conseguem conceber, perfumado e permeado por pólen e seres que dele se alimentam, não possuía as únicas flores que dão sentido a todo o universo de plantas.
Mas se não havia rosas, é porque talvez jamais as tivesse plantado. Era esse o momento de acreditar no milagre: cultivar uma semente para regar com o cuidado que lhe é próprio e deixar que cresça e se encha de esperança.
O milagre está no amadurecimento das rosas. Depois, ficam os brotos que darão novas esperanças, alimentando o ciclo da beleza da vida que nunca morre quando morre uma única flor, mas perpetua no milagre do ciclo do que vem depois e depois e depois...

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Um amor do seu olhar



Eu lembro-me a primeira vez que te vi, você caminhava sem pretensões, mas parecia não saber por onde ia. Sinalizava o percurso, provavelmente por medo de perder-se e encontrar aquilo que estava no oposto do que procurava. Ou na intenção de em algum momento voltar ao ponto onde partiu.
A gente sempre está em algum ponto! Esperando...
Suas idas e vindas eram por vezes longas demais. Passava dias aguardando um sinal de onde você estaria, com quem ou fazendo o que. A cidade do seu ponto de vista aparentava um lugar muito além daquele em que vivia. Em certos dias era inidentificável saber o que realmente você estava mostrando. Se quisesse te alcançar – nesses momentos de vontade de te alcançar - não poderia, pois esses momentos vinham cercados de pistas que não me levariam facilmente a você.
Mas eu senti que você também me sentia.
Eu percebi que um dia eu ouvia a chuva e enquanto ela entoava uma canção, em algum lugar sob a mesma chuva, você desenhava as notas de composição. Eu fantasiei estar com a cabeça no seu colo enquanto você dedilhava algum instrumento que decifrasse o som que a chuva faz quando cai sobre um coração apaixonado.
 E o que é a paixão senão o desejo de lambuzar os lábios com o mesmo sabor com que o outro saboreia com seus próprios lábios. E mais do que a boca, é embriagar-se de um pouco de tudo que o outro deseja, busca e sonha.
E eu sonhei o seu sonho quando você mostrou um devaneio espacial, caçando estrelas com sua rede de limpar piscinas. Eu acrescentei que poderíamos voar pelo universo como corpos de luz que se fundem formando uma única atmosfera que irradia calor e aquece o que está em volta.
Eu ri comigo mesmo!
Nunca vou me esquecer de quando tentei aprisionar o seu sorriso escancarado. Eu desejei que sua gargalhada reverberasse pela casa vazia e espantasse os fantasmas da solidão que sempre me perseguiram. Ou que sua boca sorria quente ao pé do meu ouvido deitados naquela grama desenhada de sombras. As sombras sempre me acompanhavam, mas com você, seria apenas arte pra ser pendurada.
Houve um momento em que a paixão - não sei dizer ao certo o tempo - virou amor!
E eu senti que te amava quando me vi enciumado pelas vivências que nunca tivemos. Dos brindes a nós que não foram brindados, dos jantares nos pratos das etiquetas e regras e boas maneiras que não comemos, ou nos fim de tarde que nunca assistimos. Porque os sonhos não passavam de sonhos. Que talvez eu sequer te conhecesse algum dia.
Eu poderia perguntar quem você era, onde estava, se gostaria de me encontrar. Porém era evidente que um amor que se constrói no olhar jamais poderia retroceder à fala.
Eu entendi que seu percurso era incerto, mas seu caminho era pontuado por sinais que me levariam a você. Eu só precisaria esperar, pois o tempo transforma tudo em uma canção de espera ou em um soneto da saudade.
Apesar de que eu nunca te vi com meus próprios olhos, sei que nunca senti tanto amor por você me fazer ver o mundo a partir dos seu jeito de vê-lo. Um amor do olhar.
Alguns irão dizer que eu apenas amo suas fotografias, mas meu coração me diz que eu amo quem está por trás delas.
Eu amo ver você olhar o mundo e eu gostaria que em algum momento você também me olhasse.



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Canção para Mim




E naquela tarde os sinos da velha igreja badalaram alto no centro da pequena cidade cinza. O céu nublado e o dia enevoado traziam o fechamento da vida que nasceu com o sol e ia-se com as cinzas do tempo. Lentamente e ao longe se ouvia as batidas dos sinos e os espaços entre elas que indicavam o intervalo de respiração de um corpo em seus últimos suspiros de uma vida esvaindo-se.
Poucos pássaros voavam assustados com a mórbida canção do metal velho contra si mesmo. Alguns apenas abriam as asas como se tentassem se equilibrar em meio às vibrações pesadas. Outros voavam para mais longe, longe da canção da morte.
Lá embaixo a vida da cidade seguia esfumaçada, e ninguém jamais conseguiu ver à sua frente com total nitidez. Essa era a condição da vida: andar como se houvesse fumaça nos olhos. Hora eles ardiam e lacrimejavam, hora fechavam-se e, em certos momentos ficavam completamente cegos ao que estava adiante. A maior parte do tempo era impossível ver o próprio reflexo no espelho sem aquela visão turva.
Longe do barulho dos sinos, mas ainda com poucas notas ecoando no horizonte amortizado, lágrimas escorriam pelo chão de taco escuro, como o sangue que sai de pulsos cortados. Gotejava chão afora os mais complexos sentimentos, enquanto o coração batia solitário arrancado do peito, noutro canto do cômodo. Suas batidas eram as batidas do sino. Os intervalos do sino eram os intervalos da respiração de quem morria lentamente.
Caídos, os olhos ergueram-se por instantes e perceberam através da janela azul na parede branca a distante torre da velha igreja da cidade cinza. Distante encontrava-se a salvação. Era praticamente impossível rastejar até a escadaria de pedra daquele templo tão sagrado.
Pensava que talvez se tivesse sido pássaro teria pelo menos batido as asas e voado em direção ao céu que foi feito pra quem pode voar. Os anjos estão lá por isso. Os pássaros estão lá porque também tem asas fortes e sabem contornar os ventos quando estes sopram contra eles.
Adan não era um anjo, nem era um pássaro e tampouco sabia contornar ventos. Jamais sonhou alcançar a imensidão do azul que existe depois de tanto cinza e das densas nuvens carregadas de choro. Ele não tinha uma forma, apenas se conformava nas batidas do sino distante, tocando o soneto do seu próprio fim.
Foi então que ouvindo a canção que tocava para ele, que num ímpeto de pensamento, teve a vontade de viver novamente. De transplantar seu coração para dentro do peito aberto e estancar aquele jorro sentimental que doía. Seu coração porém não mantinha força suficiente para bombear vida pelas suas veias.
Misticamente alguém entrou pela janela. Adan não conseguiu enxergar quem era, seus olhos cerravam-se quase nos segundos finais de quem aceitou que vai mesmo morrer. Sentiu um calor que subia dos tornozelos até a cabeça e ficou com uma sensação de que estava sendo tocado.
De um suspiro agudo, com os ouvidos completamente tapados de um oco alucinante, ele revirou os olhos, abriu a boca e se contorceu num gemido forte e sem som. A mudez da cena foi quebrada pelo barulho do coração palpitando.
Seu espírito estava de volta ao corpo. Seu espírito não tinha asas, mas às vezes precisava sair para voar livre quando o corpo o aprisionava nas angústias da falta de clareza.
Foi a forma que encontrou de voar sem asas.