quarta-feira, 24 de julho de 2013

Poema de Leve




Hoje eu acordei querendo ser leve,
Leve essa tristeza e um pouco do peso nos ombros,
Pra eu ser leste e nascer com o sol todos os dias.
Mas eu sou só isso que leste

Hoje eu acordei querendo ser neve,
Que num ano cai breve, noutro demora
Se acumula em milhões de flocos
E quando já não suporta, derrete

Hoje eu acordei querendo ser transição de fase
Condensar-me e cair em gotas
E sair desse gueto que ma faz sólido
Escorrer insípido, incolor e inodoro

Hoje eu acordei querendo ser palavra que sai
E que lava a alma de quem proferiu e de quem escutou
Palavra que não feriu, curou!
Alma que voou em forma de som

Hoje eu acordei querendo ser acordo
Firmado com o meu direito de ser
E de crer nesse ser que é, que foi, que sou
Sou hoje, sou voo, sou longe


terça-feira, 23 de julho de 2013

IceScream



Acho que a vida é esse sorvete que a gente quer tomar com muito cuidado para não se lambuzar, porque é boa até certo ponto. Segurando a “casquinha” já meio mole meio crocante, enquanto o calor do dia se manifesta em sabores sólidos se liquefazendo, que escorrem pelos dedos grudando o guardanapo. Se pinga, a gente desvia o corpo, e se não pinga, a gente dança com a casquinha para lá e para cá, enquanto as gotículas se formam, causando aquele desespero materializado em sensação de “pele doce” desconfortável.
É o desejo interno do sabor do sorvete versus o medo de experimentar no externo a sensação que o mesmo causa. É tentar experienciar a vida com apenas um dos sentidos, ou ignorar as contradições que fazem parte da mesma, mergulhando no idealismo do sorvete que não derrete e pode ser delicadamente e demoradamente saboreado.
E o que é o sorvete senão a crença na possibilidade de tentar alterar a temperatura ou o estado do corpo? Refrescar-se por inteiro por meio do paladar! Lamber planos e desejos e, às vezes, ver sonhos derreterem sob um dia escaldante. Se fartar de colheradas de possibilidades com caldas de êxtase que alteram um pouco o sabor do dia, melhorando-o. É jogar confeitos que acrescentem cor à textura escura do sabor de chocolate meio amargo.
Mas a verdade é que o sorvete talvez seja uma das sobremesas refrescantes mais banalizadas, assim como a vida. Todo mundo que eu conheço ama ou odeia, dificilmente há um meio termo. Com ou sem casquinha, quem gosta, gosta, quem não gosta não se arrisca.
E pra ser sorvete, tem que ser sólido-cremoso. Ninguém gosta de sorvete derretido, pra ser líquido deve ser misturado com outros ingredientes e virar Milk Shake – que é a vida pra ser ingerida pelo canudo.
E como o sorvete, há quem reinvente os sabores e receitas, métodos de preparo e de servir, na tentativa de agregar valor e despertar desejo pela vida. Como também há tentativas de abolir a simplicidade da bola no copinho e pazinha com gosto de madeira, por louças com design e ingredientes caros.
A vida sólida vai sendo modelada em um boleador que a faz girar até encontrar seu ponto de início: um ciclo se fecha! E vai se acumulando em bolas sobrepostas de sabores bons e ruins, conhecidos e novos, pressionadas para não desmoronar.
Servida, deve ser degustada em determinado tempo, senão o que a sustenta deve no mínimo ser capaz de reter sua mudança de estado.

Mas ainda sobre sorvetes e vida, para ser bom mesmo, de verdade, vai lambendo sem medo e deixa escorrer! Porque quando acabar o sabor, é só lavar as mãos e experimentar uma combinação nova.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Porto seguro




Ancorei em algum ponto daquela costa rochosa. Não deu pra deixar o barco tão próximo da margem e foi preciso entrar no mar e me molhar até a altura dos joelhos. A água estava numa temperatura pouco agradável. Não me lembro bem se era fim de tarde nublada, ou se era manhã fria de pouco sol, mas era tudo em tons de pedra, as mesmas que cercavam aquela ilha inabitada.
Minha blusa de lã era suficiente para proteger-me da brisa que insistia em jogar o líquido contra o sólido. E por um momento eu vi minha vida da mesma forma: como se todos os erros e quedas incidissem contra mim afim de tentar abrir brechas ou dar uma nova forma ao meu aspecto inanimado.
Com a corda nas mãos e os pés em terra (firme?), prendi o barco para que não fosse levado sem rumo, como eu fui, até chegar aqui. Não queria ficar preso, náufrago das desgraças e alimentando-me das minhas próprias dores.
Aportar no desconhecido que me habita não necessariamente significa me perder do que eu sou, ao contrário, era o encontro com aquilo que foi levado e que flutuou até ser jogado contra a ilha – que agora tenho a oportunidade de explorar.
Foram dez minutos de caminhada em subida leve, pisando sobre uma vegetação rasteira. Pequenas e minuciosas flores brancas arriscavam nascer e ser peculiares nesse ambiente hostil e pincelado com sobretons de cores agonizando.
O mar ficara para trás, mas sua presença era constante, inclusive no gosto forte que deixava no ar, que nessa altura se autodenominava vento. Ao longe era possível ver uma espécie de habitáculo feito com materiais locais. Mas quem habitaria o inóspito, o inócuo, o nada?
Não que ali não houvesse algo para oferecer, mas parecia limitado demais pra causar algum desejo de permanência eterna.
À medida que caminhava, o habitáculo parecia se tornar morada, e em determinado momento ficou de tamanho suficiente para acomodar confortavelmente um único morador.
Um pequeno muro de pedras serpenteava - ainda que com muitas interrupções - do entorno da casa até uns quinze metros em minha direção. Morria assim, sem muitas explicações, assim como mantinha uma altura que dava margem para questionamentos que iam da real necessidade de tanto trabalho para não obter a proteção necessária, ou se ele foi sendo desfeito na medida em que seu morador entendeu que não tinha do que se defender ali.
Do fim do muro até a entrada da casa a vegetação cedeu à insistência de pés que provavelmente pisavam-na diariamente, deixando à mostra uma camada de terra de um tom calcário. O caminho que resultava desse percurso, pedia gentilmente que eu tirasse aqueles sapatos molhados e dobrasse a barra da calça de uma maneira que não encostasse no chão.
Senti um pouco de calafrio, mas logo uma paz tomou conta de mim. Caminhei devagar, porque uma voz sussurrava para não correr, e de quando em quando, fechava os olhos do corpo para ver pela janela da alma.
Raios de sol frágeis transbordaram sobre as nuvens e derramaram gentis sobre aquela ilha. A incidência da luz tornou clara a visão do entorno, e o que parecia impossível ser visto, mostrou-se fácil e palpável.
Na porta da casa notei que era preciso entrar com cuidado, atento ao que me esperava, pois aquilo que fui buscar ali só deveria ser achado por mim. Ninguém jamais poderia ser meu porto seguro, a não ser eu mesmo!

Dei o primeiro passo e entrei! Quando estava dentro, a porta se fechou – mas eu tenho a chave - e poderei sair sempre que me sentir cansado e reprimido, afinal, espaço tem para que eu ande longe, mas sempre às margens de mim mesmo.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Outonos




Sei lá, hoje eu acordei outono. Meu amor se desfolhou como árvore que se entrega às inevitáveis ações do tempo, as estações. O inverno vem ao longe ao meu encontro, e sabendo que durante um tempo aparentemente pré-determinado tudo ficará cinza e frio, meu amor verde e vivo se esgotou em folhas secas. Levadas pelo vento não se sabe até onde, deixaram para traz os galhos nus e sem vida, dos quais eu insisto em negar no espelho o reflexo dessa nova fisionomia.

Sei lá, minhas raízes são profundas e eu sei que não morrerei nas estações frias, mas o inverno da alma é sempre mais rigoroso que qualquer outro inverno, e eu sinto que a seiva que ainda corta meus veios centenários, petrifica ou escorre como lágrimas que não chegam a derramar a verdadeira dor da sua falta.

Sei lá, me veio agora a lembrança de um outro dia, que com uma faca, cortaram meu tronco ainda cheirando a madeira de lei, fizeram um coração meio torto e escreveram nele duas iniciais. A incisão mesmo, não doeu, mas doeu e dói olhar aquela cicatriz e saber que ela é uma memória exposta de dias frondosos que nunca mais vivi.

Sei La, eu sempre fui de outonos, mas nunca imaginei viver como eles, assim, me desfazendo sem rumo, levado pelos ventos que me sussurram que é preciso quase morrer para viver novamente, ainda mais forte. Que meu amor que cai próximo será adubo para meu futuro florescimento. E o que cai ao longe, adubará novas árvores.

Sei La, eu não quero mesmo ficar dando frutos, nem quero virar uma cadeira de sala de jantar. Quero apenas que me deixem crescer até o meu limite, até o limite do suportável. Talvez, como já vi tantas outras árvores por aí, ao chegar a determinado tamanho, eu não suporte o peso da minha própria existência e caia sozinho, com a sensação de dever cumprido.

Sei lá, são esses sentimentos de outono, mas agora já é inverno. Perder a noção do tempo, torna tudo um pouco mais fácil. Sou o atraso, o passado recente, a lembrança que insiste em querer voltar a ser vivência.

Sei lá!

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Os 30% Que Nos Compõe


Todo ser humano adulto em média é constituído por 70% de água, isso é o que nos ensina a biologia. Porém o que a biologia não explica tão bem e, muitas vezes – assim como qualquer minoria nesse mundo -, os outros 30% que compõe a fórmula humana são considerados apenas por alguns profissionais da área e outros simpatizantes. 

A lição que fica é a de que o que importa é que sendo água a maior parte da constituição de um ser humano, este deve, portanto, ser lembrado como tal.
Quer dizer que tal qual “heterogeneizamos” os componentes que nos constituem, também o fazemos em todos os aspectos da nossa vida. É assim, por exemplo, que tratamos a própria água, a que se juntará aos nossos 70% - e que manterá nossa sobrevivência neste planeta contaminado e sujo que poderia ser chamado (i)mundo -, nós pagamos para que ela chegue até nossas casas o mais pura possível. Depois de usá-la para todos os fins, dos mais nobres aos mais esnobes, abrimos a tampa do ralo e desejamos que para longe de nós ela escorra, até alcançar algum lugar inóspito onde não teremos sequer conhecimento de sua existência.
Triste fim para água, não fosse ela uma parte de nós!
E se com a água que é parte da vida, alguns – e deixo aqui uma clara manifestação de não heterogeneizar todos os seres racionais -, temos a inconsequente ação de mantê-la longe quando não achamos que ela é própria para estar próxima, assim também o fazemos com os seres humanos que não congregam das mesmas crenças que nós.
Falando claramente às maiorias – os que são compostos de 70% de água, apenas -, venho de uma maneira amistosa avisar que nossa formação enquanto corpo não seria possível graças a sua existência isolada. Antes, só existimos porque a fórmula constitui-se de todo tipo de elementos e químicas da qual não arriscaria falar, pois não sou da área.
Mas quero dizer que se alguém fosse apenas 70% de água e nada mais, esse alguém provavelmente estaria fluindo em algum rio límpido, ou descendo pelos encanamentos fétidos de algum banheiro, afinal, se só tem em si um único elemento que te rotula num determinado grupo, você só tem a opção de seguir um fluxo. E esse fluxo jamais será tão insípido da forma como alguns acreditam, porque no percurso que a água executa ela sempre será contaminada por outros elementos que farão parte de uma nova composição.
Entenda-se por pureza algo que está livre de qualquer contaminação – mas entenda-se por contaminação algo que não é necessariamente mal, mas algo de outra natureza que em contato modifica e é modificado.
O que talvez essa crença nos nossos 70% de água tenha deixado de mais forte em alguns seres humanos, que se preocupam em se autopreencher como as tabelas de dados que classificam brancos, negros, índios, pardos, católicos ou não católicos, islâmicos ou budistas, maconheiros ou alcoólatras, salvos e condenados, etc. é de que sendo maioria, são os únicos a terem direitos. São os únicos seres humanos puros e dignos de habitar o planeta e usufruir de sua – até qual data mesmo ainda acreditávamos que a água era inesgotável? Olha só, as coisas mudam!
Mas o direito que eles querem é de que ninguém além deles possa usufruir da vida, ou que para que outros usufruam de seus adoráveis valores e modelos de felicidade, terão que se converter de joelhos à verdade que eles criaram com suas mirabolantes fórmulas químicas compostas de um único elemento: o Ego².
E ressaltando aqui os elementos que compõe o ser humano, além dos 70% de água, somos formados por outros 30% de caráter, amor, dignidade, ética, fé, etc. claro, alguns desses com maior ou menor intensidade, e é isso que nos faz seres humanos: certos elementos são imutáveis, como os 70% de água que não podem ser alterados nessa fórmula específica, mas que quando um destes humanos que se autoproclamam puros, ignoram a existência ou a importância da minoria que compõe-se dos 30%, e tende a destruí-la de todas as formas, mal sabem eles que estão destruindo a si mesmos, pois na natureza não existe um único ser que consiga viver isolado, e não dependa das diferenças que o próprio universo se encarregou de criar. E olha só mais uma vez, a própria água é resultado de uma mistura: H²O.
São elas – as diferenças – responsáveis pelo equilíbrio da vida. E equilíbrio como a própria etimologia da palavra: “Estado de um corpo que se mantém, ainda que solicitado ou impelido por forças opostas”, significa Igualdade.
E cá pra nós, alguém já se deu conta de que somos governados por uma minoria rica? Onde a maioria se encontra nesse momento, que ainda não tentou mudar as leis e a constituição, projetou marchas e cultos com a palavra de Deus sobre o rico não entrar no reino dos céus, para não permitir que eles tenham os mesmos direitos que eles.
Certamente estão sentados em suas salas do governo elaborando planos inescrupulosos para abarcar dinheiro da maioria, e tornar-se tão minoria quanto o tamanho de seus cérebros.

domingo, 31 de março de 2013

Tudo Isso Pra Que?




Das mais arcaicas formas de medição do amor.

Dos mais renomados laboratórios de pesquisas científicas sentimentais.

Nas mais enfurecidas discussões de casal, onde o cerne da questão é a quantidade.

Nos copos de cerveja mais ou menos amarga, molhando a garganta que seca na tentativa de dizer alcoolizado sobre o que se sente.

Das mais equivocadas poesias aos mais bordados e melosos poemas que configuram respiros, suspiros e batimentos cardíacos para ritmar o que se sentem quando se diz que se ama.

Dos milhares de luares que inspiraram serenatas, às vezes derramando o melhor agradecimento sobre o que o outro oferecia, às vezes derramando baldes d’água.

Nas mais chuvosas noites na beira das lareiras, em poltronas e livros que discutem o próprio ser ou não ser.

Nos milhares de bem-me-quer malmequer que acabaram com a beleza de tantas flores nefastamente arrancadas de seus jardins, apenas para descarta-las num jogo de respostas sem resposta.

Das músicas que, estridentes, espantaram as borboletas adormecidas no estômago e as mantiveram voando sem rumo por horas lá dentro.

Dos anos que acrescentam dúvidas e daqueles que as esclarecem, trazendo conforto ou incômodo quando se pensa naquele alguém.

Da caderneta que se anotava o número, ao número que é anotado mentalmente quando se fala apenas um nome.

Do presente esquecido, da data especial que não volta e da viagem que foi um fiasco.

Nas ressacas depois de um término, e nas taças e brindes de um retorno.

Das promessas que nunca se cumpriram e por isso se chamam promessas, para serem almejadas como uma possibilidade inalcançável, já que o gozo está no idealismo que gira em torno da possibilidade da realização e não na realização em si.

Dos e-mails, sms, posts, inbox, ligações, recados, post it.

Das pessoas que se envolvem sem o menor controle e se descontrolam ainda mais quando percebem que estão incontroláveis.

De tudo que foi e que será no que se foi. E que talvez um dia volte, mas será numa outra forma de ser, pois nada quando se repete, repete-se exatamente da mesma forma, e é nisso que está o amor: no novo que ele sempre revela.

Porque o amor, ah o amor!

Tudo isso pra gente entender – e não entende – de uma vez por todas que ele é incomensurável.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Memórias de Um Baú




Dia desses estava andando em pensamento pelos arredores daquela casa de fazenda, palco das mais divertidas e inusitadas reuniões familiares, e também das mais ferozes e bizarras brigas, dessas que toda família com mais de cinco pessoas juntas protagonizam sempre que expostas a determinado tempo de convivência – férias.
Revivia a cada passo todas as sensações que me acostumara certa época em certa idade – como o terreiro áspero e cheio de pedrinhas que insistíamos em brincar de pega-pega descalço, quase ignorando aquelas dorzinhas, não fosse por alguma superfície mais pontiaguda causar em alguma das crianças um corte mais forte, e aí parava a brincadeira.
Em outro momento, sentia a madeira ainda úmida e escorregadia do curral, graças ao acúmulo do lodo da temporada chuvosa. Ficávamos na varanda olhando o céu desabando lá fora, sentados no banco grande e azul, outros disputando a única rede que tínhamos e mais alguns dependurados sobre o parapeito, sentindo os respingos frios.
A memória é algo fascinante, pois quanto mais se caminha por ela, mais se reavivam os sentimentos de outrora, assinalando o quanto estava marcado – mais do que se imaginava – dentro da alma. Foi só lembrar-se da impossibilidade de brincar no quintal quando chovia que os pés me guiaram até a parte onde inventávamos esconde-esconde dentro de casa – espaço sempre teve, muito além das terras com pastos e mata nativa, a casa sempre fora a mais aconchegante do mundo, sendo suficiente pra caber aquele tanto de primo, tio, parentes de todos os graus, todo mundo muito expansivo e extrovertido. Era nosso castelo encantado em arquitetura com resquícios portugueses.
E como não mencionar os milhares de aromas: tem o cheiro do campo, da floresta, dos animais, da chuva sobre tudo isso, do café coado, do bolo de fubá, do fogo sendo soprado no fogão à lenha pra queimar mais. Tem cheiro de flor, de queijo, de madeira de lei, de madeira sendo cortada na serraria da fazenda, tem cheiro de vela da igrejinha, de amora do único pé em meio a tantas frutas, como também só tínhamos um pé de pitanga, um de jabuticaba, um de jambo.
E se tem aroma, tem sabor, ainda mais com esse tanto de gente que eu disse: tem que provar a galinhada, o biscoito de polvilho, o doce de leite com amendoim torrado, a farinha torrada na pedra, a “puxa” feita de rapadura, a carambola meio verde, a couve refogada, o molho de tomatinho fresco, e as conservas de pimentas dali mesmo.
Há muita memória, e muita caixinha pra guardar todas elas. Mas pra guardar todas as caixinhas, só tem um lugar: nessa andança pelo coração, achei no empoeirado paiol usado pra estocar os grãos das safras e também para hospedar os caseiros e peões, um baú já gasto, de madeira e couro de vaca, com suas tachas largas de metal envelhecido, feito pelo meu avô, naquele tempo em que as pessoas dedicavam o tempo a crias suas próprias coisas.
Um lindo e enorme baú, contendo em si mesmo toda a dedicação de alguém que passou alguns dias confeccionando algo que após anos continua sendo útil. Basta olhar para esse objeto que consigo ver sua tampa sendo aberta e dali, caixinha por caixinha – a das datas comemorativas, a dos dias atípicos, a dos dias normais, a caixinha das férias de 1990, a de 1991, a de 92, etc. – saindo e se esparramando por um chão sem fim.
É um baú com um tesouro inestimável, pois o valor dos objetos alcança a incapacidade de comercializá-los por quaisquer quantias financeiras. São sensações de valor inenarrável e intransferível.
Mas o mais legal desse baú de memórias é que posso derramar tudo no chão, feito criança querendo brincar com todos os brinquedos. E deixar ali mesmo espalhado! Pois tal qual família grande - pode ser que cada coisa ou cada um esteja num canto - uma hora tudo volta para o lugar onde estava antes, pra no dia seguinte esparramar de nevo, e de novo, e de novo...
As memórias assim como os laços que amarram os presentes, precisam ser desatadas. Mas uma vez que isso é feito, não se evanescem, antes, deixam à mostra as lembranças que traziam embrulhadas.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Depois das Rosas


Ele orou. Jurou que durante nove dias iria entregar suas preces a alguma força superior que fosse capaz de olhar para sua medíocre condição humana e oferecer misericórdia.
Ele orou com força de uma fé que nunca teve. Queria milagre que se toca com as mãos, desses que se sai correndo de casa em casa para que outras pessoas o toquem e também creiam. E tenham esperança de que um dia o milagre acontece. Um dia...
Cansou de chorar como imagem católica quando não consegue mais atender a tantos pedidos. Chorava sangue, água, algum perfume com aroma de cravo amarelo. Chorou até a última gota do que é possível chorar. Mas sempre tinha mais.
Acreditou que talvez suas lágrimas intermináveis fossem o milagre da vida em meio a tantas angústias. Continuar mesmo com os olhos marejados, inchados e a gola das camisas molhadas. Há muito vivia caminhando e chorando.
Mas sempre fora de acreditar num depois. Sempre há um depois, mesmo que o depois seja incerto como a morte. A morte de tudo que acreditamos, dos valores, ciência, história, religião. Mesmo depois da morte há um depois. Com as angústias não poderia ser diferente.
Talvez houvesse mais angústias depois das angústias ou talvez houvesse a morte delas.
Uma coisa sempre foi e sempre será: a angústia da incerteza do depois e com ela, a angústia da espera.
Depois de cada pequena coisa há sempre a fadiga ansiosa do inóspito e pouco palpável caminho do depois. São as durações de tempo incomensuráveis que projetam a esperança de um futuro incerto, baseados num presente interrompido pela falta de visibilidade nas possibilidades do instante, obstruído pela dor. E tudo isso empurrado por um passado, às vezes fantasmagórico, e que não deixa de assombrar.
Em suas orações pedia tantas coisas que dia após dia se perdia no que pedia e, às vezes já nem sabia como ou o que pedir. Paciência é sempre uma necessidade e talvez pedir paciência pra conseguir pedir uma coisa de cada vez já impulsionasse para um sentimento de esperança mais maduro e a visão de um depois menos ameaçador.
E durante os nove dias que oraria, pediu por um sinal de que o milagre aconteceria. Que ganhasse uma rosa como as rosas que carregavam aquele ser para quem orava. Porém se havia algo mais angustiante do que a espera de um milagre, seria a angústia dupla da espera do sinal de que o milagre estaria a caminho e em seguida a própria angústia do milagre.
Oito dias se passaram de suas orações pela aparição de rosas, e as rosas simplesmente não estavam em qualquer lugar que fosse.
Ninguém com o nome de Rosa, ou uma rua que passasse por ela. Nenhuma embalagem do que costumava comprar trazia qualquer flor que se assemelhasse àquela que tanto buscava. Ninguém lhe enviou sequer um botão. Nenhuma música contava sobre as rosas. Onde elas estavam?
Percebeu que seu mundo estava plantado de todas as flores que compõe um jardim, menos as flores que desabrocham o milagre da esperança do depois: as rosas.
Seu jardim florido, colorido com as mais intensas cores que as flores conseguem conceber, perfumado e permeado por pólen e seres que dele se alimentam, não possuía as únicas flores que dão sentido a todo o universo de plantas.
Mas se não havia rosas, é porque talvez jamais as tivesse plantado. Era esse o momento de acreditar no milagre: cultivar uma semente para regar com o cuidado que lhe é próprio e deixar que cresça e se encha de esperança.
O milagre está no amadurecimento das rosas. Depois, ficam os brotos que darão novas esperanças, alimentando o ciclo da beleza da vida que nunca morre quando morre uma única flor, mas perpetua no milagre do ciclo do que vem depois e depois e depois...

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Um amor do seu olhar



Eu lembro-me a primeira vez que te vi, você caminhava sem pretensões, mas parecia não saber por onde ia. Sinalizava o percurso, provavelmente por medo de perder-se e encontrar aquilo que estava no oposto do que procurava. Ou na intenção de em algum momento voltar ao ponto onde partiu.
A gente sempre está em algum ponto! Esperando...
Suas idas e vindas eram por vezes longas demais. Passava dias aguardando um sinal de onde você estaria, com quem ou fazendo o que. A cidade do seu ponto de vista aparentava um lugar muito além daquele em que vivia. Em certos dias era inidentificável saber o que realmente você estava mostrando. Se quisesse te alcançar – nesses momentos de vontade de te alcançar - não poderia, pois esses momentos vinham cercados de pistas que não me levariam facilmente a você.
Mas eu senti que você também me sentia.
Eu percebi que um dia eu ouvia a chuva e enquanto ela entoava uma canção, em algum lugar sob a mesma chuva, você desenhava as notas de composição. Eu fantasiei estar com a cabeça no seu colo enquanto você dedilhava algum instrumento que decifrasse o som que a chuva faz quando cai sobre um coração apaixonado.
 E o que é a paixão senão o desejo de lambuzar os lábios com o mesmo sabor com que o outro saboreia com seus próprios lábios. E mais do que a boca, é embriagar-se de um pouco de tudo que o outro deseja, busca e sonha.
E eu sonhei o seu sonho quando você mostrou um devaneio espacial, caçando estrelas com sua rede de limpar piscinas. Eu acrescentei que poderíamos voar pelo universo como corpos de luz que se fundem formando uma única atmosfera que irradia calor e aquece o que está em volta.
Eu ri comigo mesmo!
Nunca vou me esquecer de quando tentei aprisionar o seu sorriso escancarado. Eu desejei que sua gargalhada reverberasse pela casa vazia e espantasse os fantasmas da solidão que sempre me perseguiram. Ou que sua boca sorria quente ao pé do meu ouvido deitados naquela grama desenhada de sombras. As sombras sempre me acompanhavam, mas com você, seria apenas arte pra ser pendurada.
Houve um momento em que a paixão - não sei dizer ao certo o tempo - virou amor!
E eu senti que te amava quando me vi enciumado pelas vivências que nunca tivemos. Dos brindes a nós que não foram brindados, dos jantares nos pratos das etiquetas e regras e boas maneiras que não comemos, ou nos fim de tarde que nunca assistimos. Porque os sonhos não passavam de sonhos. Que talvez eu sequer te conhecesse algum dia.
Eu poderia perguntar quem você era, onde estava, se gostaria de me encontrar. Porém era evidente que um amor que se constrói no olhar jamais poderia retroceder à fala.
Eu entendi que seu percurso era incerto, mas seu caminho era pontuado por sinais que me levariam a você. Eu só precisaria esperar, pois o tempo transforma tudo em uma canção de espera ou em um soneto da saudade.
Apesar de que eu nunca te vi com meus próprios olhos, sei que nunca senti tanto amor por você me fazer ver o mundo a partir dos seu jeito de vê-lo. Um amor do olhar.
Alguns irão dizer que eu apenas amo suas fotografias, mas meu coração me diz que eu amo quem está por trás delas.
Eu amo ver você olhar o mundo e eu gostaria que em algum momento você também me olhasse.



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Canção para Mim




E naquela tarde os sinos da velha igreja badalaram alto no centro da pequena cidade cinza. O céu nublado e o dia enevoado traziam o fechamento da vida que nasceu com o sol e ia-se com as cinzas do tempo. Lentamente e ao longe se ouvia as batidas dos sinos e os espaços entre elas que indicavam o intervalo de respiração de um corpo em seus últimos suspiros de uma vida esvaindo-se.
Poucos pássaros voavam assustados com a mórbida canção do metal velho contra si mesmo. Alguns apenas abriam as asas como se tentassem se equilibrar em meio às vibrações pesadas. Outros voavam para mais longe, longe da canção da morte.
Lá embaixo a vida da cidade seguia esfumaçada, e ninguém jamais conseguiu ver à sua frente com total nitidez. Essa era a condição da vida: andar como se houvesse fumaça nos olhos. Hora eles ardiam e lacrimejavam, hora fechavam-se e, em certos momentos ficavam completamente cegos ao que estava adiante. A maior parte do tempo era impossível ver o próprio reflexo no espelho sem aquela visão turva.
Longe do barulho dos sinos, mas ainda com poucas notas ecoando no horizonte amortizado, lágrimas escorriam pelo chão de taco escuro, como o sangue que sai de pulsos cortados. Gotejava chão afora os mais complexos sentimentos, enquanto o coração batia solitário arrancado do peito, noutro canto do cômodo. Suas batidas eram as batidas do sino. Os intervalos do sino eram os intervalos da respiração de quem morria lentamente.
Caídos, os olhos ergueram-se por instantes e perceberam através da janela azul na parede branca a distante torre da velha igreja da cidade cinza. Distante encontrava-se a salvação. Era praticamente impossível rastejar até a escadaria de pedra daquele templo tão sagrado.
Pensava que talvez se tivesse sido pássaro teria pelo menos batido as asas e voado em direção ao céu que foi feito pra quem pode voar. Os anjos estão lá por isso. Os pássaros estão lá porque também tem asas fortes e sabem contornar os ventos quando estes sopram contra eles.
Adan não era um anjo, nem era um pássaro e tampouco sabia contornar ventos. Jamais sonhou alcançar a imensidão do azul que existe depois de tanto cinza e das densas nuvens carregadas de choro. Ele não tinha uma forma, apenas se conformava nas batidas do sino distante, tocando o soneto do seu próprio fim.
Foi então que ouvindo a canção que tocava para ele, que num ímpeto de pensamento, teve a vontade de viver novamente. De transplantar seu coração para dentro do peito aberto e estancar aquele jorro sentimental que doía. Seu coração porém não mantinha força suficiente para bombear vida pelas suas veias.
Misticamente alguém entrou pela janela. Adan não conseguiu enxergar quem era, seus olhos cerravam-se quase nos segundos finais de quem aceitou que vai mesmo morrer. Sentiu um calor que subia dos tornozelos até a cabeça e ficou com uma sensação de que estava sendo tocado.
De um suspiro agudo, com os ouvidos completamente tapados de um oco alucinante, ele revirou os olhos, abriu a boca e se contorceu num gemido forte e sem som. A mudez da cena foi quebrada pelo barulho do coração palpitando.
Seu espírito estava de volta ao corpo. Seu espírito não tinha asas, mas às vezes precisava sair para voar livre quando o corpo o aprisionava nas angústias da falta de clareza.
Foi a forma que encontrou de voar sem asas.