segunda-feira, 27 de junho de 2011

sessão de contos: Para Ele Um Outro Tudo



Ele acordou numa quarta-feira 16/05 sem querer muito abrir os olhos. Era sempre assim: ao ser despertado por aquele infernal toque irritante que os celulares possuem, mesmo sendo configurável com sua música preferida, ela perde logo esse posto quando vira um hino de anunciação de mais um dia qualquer. Então ele sempre opta por um dos bips que já vem no aparelho.
Adan sempre fora assim, meio esquisito. Não é que era meio esquisito, mas sempre acordava não querendo acordar, porém pouco tempo depois, sentia uma vontade de viver inexplicável que se exauria ao longo do dia, na medida em que as horas o importunavam com afazeres pré-programados.
Mas nesse dia especificamente – ou melhor, nos três últimos dias – Adan se levantou saudoso quanto à recuperação de sua esperança, cujos longos anos em coma na UTI dos sentimentos, voltou milagrosamente a abrir os olhos. Ela ainda não fala, e se alimenta com ajuda de aparelhos, porém já é um grande sinal de mudança. Sem contar que Adan se sentia angustiado há muito por ter que decidir sobre a eutanásia de sua vontade de viver, vulgo esperança.
Até a metade do dia nada fez de suas funções laborais. Estava mais entusiasmado em fazer qualquer outra coisa que não dependesse de sua obrigação em cumprir o que mandava sua rotina.
Adan era assim, um lutador indefinido, hora esperançoso, hora abatido pela falta de esperança. Mas sabia de uma coisa e tinha isso como sua maior certeza, até mais que a existência de Deus: que tudo aquilo não era para ele, que para ele era um outro tudo. Sentia-se feliz por entender a linguagem da vida. Mesmo que nem sempre concordasse com ela, mas a entendia bem.
Porém tal entendimento tinha um preço: a solidão. Sim, ele era solitário mesmo em grupo. E a solidão lhe causava enormes dores de cabeça, pois passava horas e horas e horas a fio sonhando e imaginando e querendo e indagando e mortificando a própria alma com insultos a si mesmo e a suas atitudes e pensamentos aflitivos, que só o jogavam para mais longe de seu não-eu, sem contudo empurra-lo para o eu verdadeiro.
A solidão era um preço para sua doença chamada inconformismo. Na verdade Adan sempre amou estar consigo mesmo. Ser solitário era uma opção tanto quanto ser naturista ou nômade, mas ele não era nenhum dos dois últimos. Imaginem um solitário naturista e nômade? Que mal tem em ser um pouco egoísta, pensava! Mas ele era mais que um pouco, ele era egoísta a ponto de querer um mundo só pra ele. Um mundo que tentava desesperadamente construir e que sucumbia às ações da vida que nunca lhe deixara satisfazer seus egóicos desejos ao tempo dele.
Todos nós temos um pouco disso aqui dentro. E temos também um pouco de Adan vez ou outra, em maior ou menor proporção. Depende do estado de espírito, quando se tem um.
Adan crê que existam pessoas sem espíritos, assim como existem espíritos sem corpos, o contrário também é possível. É possível porque tem gente que não se pode sentir. Tem gente que aparenta uma ausência de alma, de aura. Como se apenas a casca de carne e ossos perambulasse sem um recheio energético.
Ainda é quarta 15/06 e Adan não fez sequer um esforço em trabalhar. Está ditando esse texto que escrevo, dizendo que parou na parte do corpo sem alma, se autoindagando se isso é mesmo o que ele crê, ou se foi um flash que passou pela mente. Desistiu e mudou o assunto.
Disse que ainda há esperança em seu peito, mas que era para eu ligar o aquecedor que a baixa temperatura da frente fria que veio de algum lugar frio, está congelando seu coração.
Era para eu apagar a palavra coração e escrever alma. Adan não gosta que cite coração, pois é um órgão de carne que não sente nada. Ele também odeia aquela representação em desenho que nada se assemelha com a forma original que há no peito dentro do corpo humano.
Agora a pouco ele contou que rasgou o papel sobre a eutanásia e rejeitou a morte de sua esperança. Contou pra ela, mas ela, como esperado não se moveu, apenas fechou os olhos como quem quer voltar a dormir. Ele entendeu e saiu da sala na ponta dos pés. Deixou para trás aquela máquina que mede os batimentos cardíacos, registrando os abalos sísmicos do coração, subindo e descendo numa linha desenhada pelos sons do piii, piii, piii.... quase um despertador cansativo de celular. 

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