sábado, 22 de agosto de 2009

Maria vai com as Cláudias

Gosto_prazer, satisfação; inclinação, propensão; discernimento, critério; feitio, forma, estilo.
De A a Z, do menor para o maior, do branco ao preto, degrade, crescente, decrescente, por nome, por tipo, por data, etc., clean, funcional, ideal, intocável, imóvel, inalterável, etc².
Organizar o mundo; classificar, rotular e definir um espaço para cada coisa [as mínimas coisas]. Quantas e quantas horas da nossa vida perdemos tentando obter a “perfeição”: a sala perfeita, o trabalho perfeito, o cabelo perfeito, a roupa perfeita, o relacionamento perfeito. Os livros são organizados em ordem alfabética, os CDs por data, cantor, álbum, etc., a mesa de centro está a 32cm do sofá de couro preto, que está a 3cm da parede pintada com tinta aveludada na cor vermelho intenso.
-“Meu relacionamento é incrível, nós gostamos das mesmas coisas e nunca brigamos por nada”.
Viagem sem contratempos: sair de casa às 17:00; pegar um táxi e chegar às 17:30 no aeroporto, sendo que o vôo sai às 18:20. Sem atrasos, sem cancelamentos. Tudo na mais perfeita ordem e saindo melhor do que o esperado.
A noção de que a totalidade sem imperfeições é o ideal de mundo capaz de nos tornar plenamente felizes é completamente equivocada. Não existe felicidade na perfeição absoluta.
Imagine uma vida onde não existam interrupções, fissuras ou imprevistos que te obriguem a sair da passividade cotidiana.
Imagine viver sabendo exatamente o que vai acontecer nas próximas horas, ou nos próximos dias e talvez até mesmo nos próximos anos. Você faz planos à longo prazo e tudo sai conforme o que você planejou.
Há realmente um interesse da humanidade em se entregar a uma vida tão previsível? É possível que todas as pessoas queiram sempre a mesma sala de TV com: sofá de couro preto + tapete de pele branca + duas poltronas de couro preto diferentes do sofá + TV LCD [a maior possível] sobre um módulo retangular tabaco com a parede pintada de vermelho ou qualquer outra cor [já que as outras paredes são brancas] completando com um quadro de pintura abstrata qualquer comprado em um lugar qualquer e que combina com o restante do ambiente.
Onde estão as subjetividades, as preferências, até mesmo os juízos de valor particulares que tornam as pessoas únicas?
Porquê eu quero tanto uma sala dessas? O que eu sinto quando entro num lugar assim? Qual o meu posicionamento em relação à cada coisa inserida naquele ambiente? Esse ambiente é o meu “ideal” de aconchego? Nós estamos realmente nos questionando sobre o que nos é imposto?
Não!
Ninguém questiona a realidade que é apresentada, estão todos submersos nesse mundo de futilidades, preocupados em satisfazer os “desejos impostos” pela maioria, acreditando que a perfeição está na obtenção desse mundo utópico.
Agora pare e pense: alguma vez já aconteceu de você se cansar da rotina de casa/trabalho/diversão nos fins de semana? Alguma vez você desejou que alguma coisa fora do normal acontecesse no seu dia porque a repetição quase automatizada de ações se tornara cansativa?
Ótimo, isso prova que você só está buscando a perfeição porque não parou para pensar sobre quão enfadonha ela é, mas no fundo sabe disso, só está com preguiça de questioná-la, visto que é mais fácil aceitar.
E assim que começar a pensar e questionar que a unidade de gostos é uma hipocrisia, começará a enxergar que quando o táxi atrasa no trânsito engarrafado você tem a chance de conversar com o motorista. Descobrir que ele não existe ali naquele momento, trabalhando apenas para ganhar seu dinheiro e em troca conduzindo-lo ao seu destino. Muito além da necessidade/função, existe um mundo de possibilidades esperando para serem exploradas.
E é nessas trincas que surgem na parede da vida [lisa e pintada] que é possível enxergar aquilo que está além do que se vê. Que os olhos não captam na correria do dia-a-dia.
Num passo de cada vez, mais cedo ou mais tarde nós descobriremos que toda atemporalidade existente nos ambientes arquitetônicos de revistas, por exemplo, sem seres humanos que os habitam, sem sujeira, sem desorganização, sem utilização, não passam de propaganda para vender cada coisinha naquela foto, promovendo a generalização dos gostos para produção em série, gastando pouco e obtendo o máximo de lucros.
Só então será possível abandonar essa sociedade de Marias vão com a Casa Cláudia, com a Casa Vogue, e por aí vai...

2 comentários:

  1. Me lembrei do personagem principal do filme "Mais Estranho Que Ficção". ocara conta a quantidade de vezes que passa a escova em cada dente... A quantidade de passos que dá até o ponto de ônibus, vive numa rotina... Já viu o filme?

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  2. loucura....pensar e ter certeza q mais d 6 bilhões de pessoas habitantes nesse planeta errante passam por essa 'incoerência' existencial. inclusive eu...hehe
    a pressão da sociedad massifica o nosso dia-a-dia à busca utópica da perfeição para ser feliz.
    adoro seus textos...bjim

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