segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Semi-Transparente

Chega um momento em que você começa a observar a chuva cair, olhando através do embaçado vidro e cheio de marcas de dedos e você pensa: -“merda, eu limpei tudo outro dia, não é possível que as coisas se mantenham limpas por tão pouco tempo”. E fica ali sentando matutando com um pouco de cólera na alma e desgosto na ponta da língua, por jogar tempo e energia em algo que simplesmente não durou.

Até parar pra observar a maldita chuva que cai, você não havia dado conta de que a porra das marcas de dedo estavam ali. E poxa, cada vez que você olha você nota quão nítidas elas são. Algumas possuem impressão digital tão perfeita que dá vontade de chamar um detetive e descobrir quem foi o responsável, inconseqüente e sem noção que tocou os vidros da porta. Não é possível que esse ser asqueroso não tenha percebido todo o trabalho que uma porta de vidro exige para manter-se limpa e transparente.

Mas o pior nem é isso. –“Meu Deus”. Você pensa! -“E se as pessoas de “fora” viram isso? No mínimo vão me achar desleixado, nojento ou sei lá o que”. E começa uma análise criteriosa de possibilidades que vão de comportamento subjetivo a pensamentos coletivos daquilo que é um óbvio proibitivo do tipo “Não toca-se jamais em um vidro que não seja feito para tocar”. E a porta, principalmente a sua porta definitivamente não foi feita pra isso.

Porém ela está ali, semi-transparente por causa da sujeira. E como conseqüência, o mundo lá fora encontra-se semi-desfocado, semi-encardido, semi-repugnante.

E ainda não foi encontrado o culpado de tudo isso; poderia ser eu, mas eu jamais tocaria no vidro que eu mesmo limpei, eu não posso ser considerado o responsável por algo que jamais faria, isso não faz o menor sentido, ninguém limpa e suja o que limpou e blah blah blah; ou poderia ser outro.

Eu posso até me sentir um pouco culpado de não selecionar bem as pessoas que entram e saem pela porta de vidro. Talvez deixei-me iludir pela simpatia inicial e não notei as mãos sujas que deslizavam pelo vidro. Ou talvez eu soubesse da sujeira desde o início e sempre que pensava em limpar, eu talvez apenas pensasse. Mas é quase uma certeza que havia limpado e talvez tenha feito mesmo.

Agora fico imaginando se é melhor pegar a flanela e o limpa vidros e desperdiçar mais uma boa parte do meu tempo limpando essas marcas ou se ignoro e tento aprender a viver olhando através de um vidro embaçado. O problema da segunda opção é você acostumar-se a isso, pois leva tempo, mas em algum momento cansa. O problema da primeira é que as faxinas são sempre efêmeras, limpa-se hoje, limpar-se-á amanhã.

Ou posso trocar a porta, tirar o vidro, quebrar as paredes, escolher um outro material e modelo de maçaneta, cores, design.

Enfim, ainda chove lá fora, eu continuo sentado aqui escrevendo e observando o mundo encardido que se projeta para além da minha horrível porta de vidro.

Um comentário:

  1. Incrível como na maioria das vezes continuamos sentados observando a porta semi-limpa...apenas observando! ;)

    ResponderExcluir